Pular para o conteúdo principal

A cidade como personagem


Existem algumas memórias que me vem à mente sempre que penso nas cidades como personagem de nossas histórias.

Um ônibus rodando rapidamente por uma estrada. Pela janela as paisagens passam como um filme em rotação acelerada. A cada agrupamento de casas você consegue destacar apenas um detalhe dentre tantos outros. Uma janela azul, um monte no meio do campo que forma um cupinzeiro, mas que pode se confundir com vacas, para quem não enxerga bem. As cidades, neste caso, são personagens latentes, chamando nossa atenção para que desembarquemos do ônibus e desbravemos suas ruas, ruelas e praças.

Há a cidade da exposição, aquela que nos mostra que estes lugares a noite são pontos de luzes, que nos fascinam. Grandes cidades formam uma cúpula de luz, quase como se a iluminação fosse um escudo protetor.

Do avião a vista é mágica. Milhares de pontinhos brilhando ao longe, como estrelas que decidiram descansar em terra. Que brilham como uma constelação chamada cidade.

Tanta beleza não escaparia aos olhos dos escritores.

A verdade é que, quando pensamos em literatura, muitas vezes nos lembramos de protagonistas humanos: heróis, anti-heróis, narradores ou figuras secundárias que ganham vida no enredo. Mas há algo fascinante na forma como as cidades também podem se tornar personagens – com voz, humor, memória e até destino próprio.

Uma cidade não é apenas cenário. Ela pulsa, respira, influencia. É capaz de moldar o comportamento das pessoas, ditar o ritmo da narrativa e carregar em suas ruas a memória do coletivo. Clarissa Dalloway, ao andar por Londres em Mrs. Dalloway, encontra-se não apenas com passantes, mas com a própria cidade, que a acolhe e a transforma. Da mesma forma, em Nove Noites, de Bernardo Carvalho, São Paulo aparece como um espaço denso, labiríntico, quase cúmplice do mistério que envolve a história.

Mas é em Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, que a metáfora se torna mais explícita: as cidades falam, seduzem, enganam, resistem. Marco Polo descreve a Kublai Khan cidades impossíveis, mas nelas reconhecemos nossos próprios espaços urbanos e o que está dentro deles: desejos, medos, memórias cristalizadas em praças, becos e pontes. Calvino mostra que cada cidade é também um espelho do ser humano: fragmentada, contraditória, múltipla e fascinante.

Ao pensar a cidade como personagem, percebemos que viver nela é também viver com ela. Cada rua guarda uma narrativa, cada esquina é testemunha silenciosa de encontros, perdas e recomeços. A literatura apenas revela, em palavras, aquilo que as cidades já carregam em seus muros e calçadas: histórias esperando para ser contadas.

Qual é o segredo? É mergulhar, primeiro na literatura cotidiana. Estar presente no presente; estar sempre onde deveria estar, mesmo que aquele lugar, aquela praça tenho o sabor de uma obrigação.

Depois, mergulhe em uma história, perceba como autores transformam o que achamos banal – como o muro de um cemitério – em algo que fará parte importante de uma trama que pode ser de amor, mistério ou apenas de sabedoria.

Proponho que tente recriar isso, que busque em suas memórias os  momentos felizes e importantes, e redescubra o lugar onde eles aconteceram. Registre no papel.

E, se sair de casa, não se esqueça de olhar aquela velha rua como uma contadora de histórias. Abra os ouvidos e o coração. Ouça com cuidado. Ela está sussurrando algo para você.

Um final de semana repleto de tudo o que é bom, e se ouvir alguma coisa na sua cidade me conta.

 

Foto: Travel Scape/ Freepik  

Comentários

As mais vistas

A princesa dos olhos tristes

Se vocês me permitem um pequeno comentário intimo, há uma “mania” na família de minha mãe de colocar nome de princesas nas filhas. Naturalmente começou com a minha, que me batizou de Soraya (em homenagem a princesa da Pérsia, Soraya Esfandiary Bakhtiari), depois minha prima batizou sua filha de Caroline (Homenagem a filha da belíssima Grace Kelly, rainha de Mônaco) e alguns anos depois, meus tios colocaram o nome de Anne (princesa da Grã Bretanha), em minha prima. Então é fácil imaginar que vivemos em clima de “família real” boa parte de nossa infância e adolescência. Mas, de todas as histórias reais, a que mais me intriga e fascina é a da princesa da Pérsia, por ter sido uma história de amor com final infeliz, mas não trágico. Soraya foi a esposa e rainha consorte de Mohammad Reza Pahlavi, Xá da Pérsia. Conheceram-se na França, na época em que Soraya fazia um curso de boas maneiras em uma escola Suíça. Logo ela recebeu um anel de noivado com um diamante de 22,37 quilates. O casamento ...

Inferno

Autor:  Dan Brown Tradutor: Fabiano Morais e Fernanda Abreu Editora:  Arqueiro Número de páginas:  448 Ano de Lançamento:  2013 (EUA) Avaliação do Prosa Mágica:   9                               Gênio ou Louco? Você termina a leitura de Inferno e continua sem uma resposta para esta pergunta. Dan Brown nos engana, muito, de uma maneira descarada, sem dó de seu leitor, sem nenhuma piedade por sua alma. O autor passa praticamente metade do livro te enganando. Você se sente traído quando descobre tudo, se sente usado, irritado, revoltado. Que é esse Dan Brown que escreveu Inferno??? Nas primeiras duzentas páginas não parece ser o mesmo que escreveu brilhantemente Símbolo Perdido e Código D’Vince.  Mapa do Inferno. Botticelli. Então, quando você descobre que está sendo enganado, as...

Setembro

Autor:   Rosamund Pilcher Tradução: Angela Nascimento Machado Editora:  Bertrand Brasil Número de páginas: 462 Ano de Lançamento: 1990 Avaliação do Prosa Mágica:   10                         É uma história extremamente envolvente e humana que traça a vida de uma dúzia de personagens. A trama se passa na Escócia, e acontece entre os meses de maio a setembro, tendo como pano de fundo uma festa de aniversário que acontecerá em grande estilo. Violet, que me parece ser a própria Rosamund, costura a relação entre as famílias que fazem parte deste romance. Com destreza e delicadeza, a autora   nos conta o cotidiano destas famílias, coisas comuns como comer, fazer compras, tricô, jardinagem. Problemas pessoais como a necessidade de um trabalho para complementar a   renda e outras preocupações do cotidiano que surpreendem pela beleza...

Seguidores