Pular para o conteúdo principal

Postagens

O Mito de Sísifo

Empurrar uma pedra morro acima e vê-la despencar morro abaixo, tendo que reiniciar o trabalho sempre. Que atire a primeira pedra quem já não carregou a sua. Há livros que não apenas se lêem, mas se vivem. O Mito de Sísifo, de Albert Camus, é um desses encontros raros. Publicado em 1942, em plena Segunda Guerra, o ensaio parece dialogar diretamente com o nosso tempo, em que tantas certezas se esfarelam. Camus parte de uma pergunta simples e devastadora: vale a pena viver? Quando o mundo parece indiferente, quando nenhuma explicação última nos consola, o que resta? Camus chama de absurdo o choque entre o desejo humano por sentido e o silêncio do universo. Não se trata de provar que a vida é sem propósito, mas de reconhecer que o mundo não responde às nossas exigências de ordem. A tentação é buscar uma saída — um Deus que garante sentido, uma ideologia que promete redenção, um “amanhã” que justifique o hoje. Camus recusa essas promessas. Para ele, “não há amanhã”. E é exatamente aí qu...
Postagens recentes

O silêncio como linguagem na literatura

Há um instante, entre uma palavra e outra, em que o silêncio se abre como uma fenda luminosa. É nesse intervalo que a literatura respira. O silêncio, muitas vezes esquecido, é também linguagem: diz sem dizer, sussurra sem voz, ecoa na ausência. Os escritores sabem que o indizível é parte da vida, e que nenhuma frase contém tudo. Por isso, o silêncio aparece como gesto de confiança: o autor deixa ao leitor o privilégio de preencher o espaço em branco, de escutar o que não foi escrito. Hemingway escondia sob a superfície da narrativa um oceano de sentidos — e o que não se conta vibra mais forte do que o que se diz. Há silêncios íntimos, como em Virginia Woolf, quando uma pausa na consciência da personagem revela mais sobre a alma do que longos diálogos poderiam revelar. Há silêncios carregados de dor, como o intervalo entre duas frases em que se pressente o luto. Há silêncios que são resistência, metáforas erguidas contra a censura, palavras caladas que sobrevivem justamente por não ...

A cidade como personagem

Existem algumas memórias que me vem à mente sempre que penso nas cidades como personagem de nossas histórias. Um ônibus rodando rapidamente por uma estrada. Pela janela as paisagens passam como um filme em rotação acelerada. A cada agrupamento de casas você consegue destacar apenas um detalhe dentre tantos outros. Uma janela azul, um monte no meio do campo que forma um cupinzeiro, mas que pode se confundir com vacas, para quem não enxerga bem. As cidades, neste caso, são personagens latentes, chamando nossa atenção para que desembarquemos do ônibus e desbravemos suas ruas, ruelas e praças. Há a cidade da exposição, aquela que nos mostra que estes lugares a noite são pontos de luzes, que nos fascinam. Grandes cidades formam uma cúpula de luz, quase como se a iluminação fosse um escudo protetor. Do avião a vista é mágica. Milhares de pontinhos brilhando ao longe, como estrelas que decidiram descansar em terra. Que brilham como uma constelação chamada cidade. Tanta beleza não esca...

As muitas notas da música brasileira

A literatura infantil é a base da formação de um leitor. Precisa ser muito bem pensada para cativar um publico extremamente disperso e ao mesmo tempo curioso. É o gênero literário mais desafiante para um autor, porque precisa ser tão “pensado” que acaba sendo exaustivo a finalização de uma obra. Faz tempo que quero falar de literatura infantil pela importância da construção do futuro no hoje. As muitas notas da música brasileira, do jornalista Luís Pimentel, é uma iniciativa bem interessante para trazer uma linha do tempo da música brasileira para crianças e pré-adolescentes. O autor dá pinceladas de teoria musical como o nome das notas, a lei que exige o ensino de música nas escolas, os instrumentos músicas e a era do rádio. Quando ele passa pelo período que chamou de erudição peca pela escassez. Muito pouco de Vila Lobos e uma notinha pequena demais sobre a grande Chiquinha Gonzaga.   Faltou profundidade, já que o Clássico é sempre a base para toda a forma de música. De...

A literatura como memória

Ontem mesmo estava me lembrando de uma cena. Mongaguá, um prédio de apartamento de três andares com uma laje enorme para as pessoas estenderem roupas. Uma tarde sem sol. Eu na minha versão 18, debruçada na mureta, um livro nas mãos e os olhos ávidos por aquela leitura que fluía muito mais que o vento que esvoaçava meus cabelos e as toalhas multicoloridas nos varais. O livro? Amor de Perdição, do grande autor Camilo Castelo Branco. Sob certo aspecto, a leitura deste livro, o impacto que ele causou gravou as cenas daquele momento. Naquele dia sem praia, um livro marcou o tempo com suas garras de uma forma tão forte, que até hoje posso sentir o vento, o sal do ar e o colorido daquele lugar. Ler é, em muitos aspectos, revisitar o tempo em todos os seus pontos. A literatura não apenas inventa mundos, mas guarda lembranças – individuais e coletivas – que poderiam se perder no silêncio, na falta e no esquecimento. Um livro pode ser um arquivo mais vivo que qualquer documento, porque prese...

A literatura como espaço de resistência

A literatura sempre foi mais do que palavras impressas em páginas. Ela é uma forma de existir, questionar e resistir. Desde as narrativas orais que preservavam memórias de povos silenciados até os romances contemporâneos que denunciam injustiças sociais, a literatura abre caminhos para vozes que muitas vezes seriam caladas. Resistir, nesse contexto, não significa apenas levantar uma bandeira política explícita. Significa também dar espaço ao que é humano, ao que escapa da lógica produtivista e utilitária do mundo. Quando Virginia Woolf coloca Clarissa Dalloway andando pelas ruas de Londres e refletindo sobre a vida, ela resiste ao apagamento da subjetividade feminina. Quando Graciliano Ramos expõe a secura da terra e da existência em Vidas Secas, ele resiste ao esquecimento da realidade nordestina. E não é apenas em livros que retratam a realidade que isso acontece. Você pode ver esse resistir em tramas como O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien. Quando ele coloca um grupo de pesso...

Elogio da Loucura

Em tempos controversos como o atual, falar de loucura parece muito óbvio. Tão comum que você deve estar se perguntando: - Por que eu deveria ler Elogio da Loucura, do filosofo e teólogo holandês Erasmo de Rotterdam, que escreveu este texto por volta de 1511? Posso te dar inúmeras razões, mas vamos personificar a própria “Loucura” e imaginar que ela resolvesse subir em um palco e, de peito aberto, começasse a falar sobre nós, humanos. Sem papas na língua, ela diria o que pensa de reis, religiosos, acadêmicos, políticos e até das pequenas vaidades do dia a dia. O resultado? Um texto que parece ter sido escrito ontem, apesar de ter mais de 500 anos. Elogio da Loucura não é um tratado chato de filosofia. Pelo contrário: é uma sátira bem-humorada, que usa ironia fina para mostrar como a vida seria impossível sem um pouco de... insensatez. Erasmo dá voz à “Loucura” para expor hipocrisias e, ao mesmo tempo, nos fazer rir das contradições humanas. O interessante é que o livro não cai nem...

Seguidores