O que seria da vida de um leitor
sem o tradutor? Você já pensou nisso? Quantas línguas você teria que falar e
conhecer com fluência para apreciar a vida dos personagens que tanto ama?
Pensando nisso e na importância
que este profissional tem em nossas vidas, entrevistei o tradutor Peterso
Rissatti, ou Petê Rissatti como é conhecido.
Petê é tradutor desde 1999 da
difícil língua alemã e do inglês. Já traduziu inúmeros textos das áreas
jurídica, administração, finanças e marketing e livros de ficção e não-ficção. Além disso,
Petê transita desde 2009 entre os “criadores de sonhos”. No ano passado lançou“Réquiem: sonhos proibidos” resenhado aqui no Prosa Mágica, e que considero um dos
melhores livros que li em 2012.
Nesta entrevista ele nos explica
com palavras apaixonadas a arte de traduzir, de trazer ao português obras que
seriam inacessíveis. E fala um pouco sobre as decisões que um tradutor precisa
tormar em momentos importantes do trabalho que realiza.
SF. Petê, você é um tradutor
experiente e um escritor. Como você explicaria a um leigo - as pessoas
apaixonadas por livros - o que é tradução literária, suas dificuldades e
desafios?
PR. Oi, Soraya. Primeiro,
agradeço a oportunidade de falar um pouco desta profissão tão desconhecida do
grande público que é a tradução. Talvez por esse desconhecimento, seja dado
pouco valor a um ofício tão bonito e, ao mesmo tempo, tão árduo. Muita gente
pensa que basta saber uma língua estrangeira e trocar as palavras para o outro
idioma. Porém, nenhuma língua é feita de palavras separadas, mas dos seus
significados, das suas junções. E, além disso, cada idioma tem uma história,
uma cultura por trás dele. Muitos dizem que não se traduz textos, mas culturas.
Mesmo um texto técnico tem uma cultura embutida que não pode ser ignorada. E é
aí que o tradutor entra com seu conhecimento, que vai muito além do idioma.
SF. Os leitores, os espectadores
de filmes que conhecem um pouco de uma língua estrangeira se perguntam
constantemente o porquê de determinadas mudanças. Vou exemplificar: o filme
Angel Heart, do diretor Alan Parker foi traduzido no Brasil como Coração
Satânico; Casual Vacancy, da J.K. Rowling se chama Morte Súbita. Em Harry
Potter o nome James foi traduzido como Tiago. Você poderia nos dizer como essas
decisões são tomadas? Quais são os elementos que levam o tradutor, ou editor, a
realizar estas mudanças?
PR. Temos três situações aqui: o
marketing, as decisões editoriais e as decisões tradutórias.
O marketing toma decisões para
vender, basicamente. Como ficará melhor para o público, como venderá melhor,
qual o impacto. Quando um livro está para ser lançado junto com um filme, em
geral eles precisam “conversar”. Um exemplo que sempre dou é o do filme
Unbreakable, do diretor M. Night Shyamalan (de O sexto sentido). A tradução do
título foi Corpo fechado, que mexe com o imaginário brasileiro sobre a proteção
divina, mística. O filme não tem absolutamente nada a ver com isso, é uma
homenagem aos super-heróis. Uma excelente jogada de marketing.
A segunda situação é a decisão
editorial. Os títulos em geral são pensados e repensados pela editora, pois
eles são um dos cartões de visita (junto com a capa) de um livro. Por exemplo,
o título Casual vacancy não pode ser traduzido ao pé da letra. É a ausência de
um membro de uma assembleia ou órgão governamental por motivos de força maior:
morte, renúncia, desqualificação etc. Não sei qual foi o caso, mas a tradutora
deve ter dado suas sugestões e fecharam num título atraente, Morte súbita (que
é o que acontece para a trama se formar). Traduzi um livro chamado Du sollst
nicht lügen [Não mentirás], sobre um jornalista alemão que ficou 40 dias sem
mentir. O livro é hilário, mas o título “Não mentirás” não ficaria bom mesmo.
Optaram por Sincero com adaptação do subtítulo que ficava meio escondido na
edição alemã (a história real bem-humorada de um homem que tentou viver sem
mentir). Gostei muito, achei uma decisão acertada. Mas nem sempre foi assim.
A terceira, que tem relação com
títulos, nomes de personagens e outros, é a decisão tradutória. O tradutor faz
suas escolhas pelo conhecimento que tem da obra, do autor, da cultura e de
tantas outras informações que, muitas vezes, fogem do que os leitores sabem
sobre determinado tema. Apesar de não ter lido a série Harry Potter, Lia Wyler,
a tradutora do bruxinho, é muito competente. Se optou por chamar James de
Tiago, fazendo uso de uma “tradução” consagrada do nome bíblico, ela deve ter
seus motivos, que muitas vezes não ficam claros para o leitor. E o processo
editorial é bastante complexo, em geral muitas pessoas interferem de alguma
forma no texto antes de ele ir para as livrarias, e algumas coisas podem fugir
do controle do tradutor, mesmo não sendo esse o “mundo ideal”. E a vida do
tradutor é feita de decisões: como o personagem vai falar, como o narrador vai
se expressar, como chamar as inúmeras coisas que não existem no Brasil, como
explicar sem ficar chato, como fazer o autor “escrever” em português de modo
que o leitor fique feliz e satisfeito com a obra. Não é um trabalho fácil
mesmo. [risos]
SF. Eu sempre penso no tradutor
como um coautor do livro. Traduzir é reescrever?
PR. Pela lei de direitos autorais
vigente, o tradutor é considerado “autor de obra derivada”, não coautor. Ao
mesmo tempo, somos uma espécie de “representantes” do autor em língua
portuguesa, ou seja, fazemos as vezes do autor para que as pessoas que não
dominam a língua estrangeira possam desfrutar da obra. O poeta e tradutor Paulo
Henriques Britto, no seu último livro, A tradução literária, faz um paralelo
muito interessante: quando leio Kafka, não digo “li [o tradutor] Modesto
Carone”, mas sim “li Kafka”. Confiamos que o tradutor escreveu o que Kafka
teria escrito em português, como se o próprio Kafka tivesse escrito. Porém,
houve a intervenção do tradutor para que aqueles textos chegassem até nós. O
autor não deixa de ser Kafka, mas aquelas palavras que estão impressas no papel
são “derivadas” da obra dele por alguém com capacidade de fazê-lo. É uma
reescrita com liberdades medidas, calculadas.
SF. Qual foi o livro mais difícil
de traduzir e o mais prazeroso?
PR. Até o momento, o livro mais
difícil de traduzir foi Não tenho inimigos, desconheço o ódio [L&PM], do
dissidente chinês e Nobel da Paz de 2010, Liu Xiaobo, traduzido do alemão. Não
pela questão linguística, mas pelo assunto: a China. Tive dificuldade em
encontrar fontes para confirmar ou mesmo obter informações das quais o livro
tratava, sobre a situação da China hoje em vários aspectos: culturais,
econômicos, sociais e outros. E ele me deu muito prazer, ao mesmo tempo, pois
foi como desvendar um grande mistério, descobrir um país pouco conhecido por
nós. Por coincidência, outro livro que traduzi para a L&PM, mas ainda não
foi lançado, me deu um enorme prazer. Ele se chama Die Herrlichkeit des Lebens
[O esplendor da vida], um romance baseado no último ano de vida do Kafka com
sua última mulher, Dora. Encantador.
SF. Para um tradutor brasileiro é
mais difícil traduzir do inglês ou alemão?
PR. Não dividiria a dificuldade
por idioma, mas por livro. Cada um traz dificuldades diversas, desafios
diferentes, provações várias que não podem ser medidas pelo idioma. Claro, o
idioma alemão é mais complexo e soma-se a isso o contato mínimo que temos com a
Alemanha e sua língua. Pouca gente conhece música alemã, a literatura alemã
ainda é parca nas nossas prateleiras (apesar dos grandes nomes alcançarem
sucesso, ainda é pouco, muito pouco). Mesmo assim, a obra e o autor ditam mais
as dificuldades que o idioma.
SF. Por que tradução? O que te levou a este trabalho?
PR. Quando adolescente, eu queria
ser ator. Mas acabei desistindo das artes cênicas por uma série de fatores, um
deles o econômico. E também sempre fui bem em inglês na escola. No ensino
médio, uma professora (Lérida, lembro do nome dela até hoje) me disse que eu
poderia fazer faculdade de tradução, que eu me daria bem. Fui meio desconfiado
para a Faculdade Ibero-Americana, na época um dos centros de excelência em
tradução, mas na primeira aula, com o prof. Fernando Dantas (já falecido), eu
pensei comigo: é isso que eu quero fazer da minha vida.
SF. Deixe um recado aos leitores,
aos admiradores do trabalho de tradução literária.
PR. Sempre que traduzo uma obra,
penso o tempo todo no leitor. Ele é o meu cliente de verdade, é o meu chefe.
Quando ele pegar o livro que traduzi, quero que sorria, fique satisfeito, chore
com as passagens tristes, que sinta o que o autor quis dizer. Como escritor,
sei que um dos prazeres de ter escrito uma obra é saber que as pessoas se
identificam com ela, gostam dela, ouvem o que ela tem a dizer. Como tradutor,
meu objetivo é o mesmo: que o prazer da leitura seja o máximo.
Bela entrevista e muito esclarecedora!
ResponderExcluirParabéns pelo grande trabalho, Petê!
ResponderExcluirEu sou uma das pessoas que confia em tradutores!!!
Bela entrevista, superdidática, explica direitinho a função e como é preciso amor pela literatura para exercê-la. Por isso você é tão bom no que faz. Parabéns para o blog e para você.
ResponderExcluirHola guapa, una entrevista interesante.
ResponderExcluirte dejo mis saludos desde Valencia.
feliz semana.
Marcia,donadajanela, Nanete e Ricardo. Obrigada pelos comentários. O Petê é realmente uma pessoa muito especial e talentosa. Foi um grande prazer entrevistá-lo.
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