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Desonra

    “Escrito com fluidez exemplar, o romance enfrenta problemas intratáveis da atualidade de um país subdesenvolvido.” O texto de Mário Sérgio Conto resume um sentimento que me perpassou durante toda a leitura.

Desonra, do Premio Nobel de Literatura J.M.Coetzee, escritor sul-africano que escreve em inglês, é um livro estranho, perplexo, violento e lírico. É tão paradoxal que ao final você fica com a sensação de que a história não acabou.

A trama se inicia com o professor e acadêmico David Lurie, cuja vida é extremamente racionalizada e burocrática, tendo um caso com uma aluna jovem. De repente, ele se vê em meio a acusações de abuso e quebra dos códigos acadêmicos. Julgado e convicto de que o que ele fez não é errado, David é expulso e vai viver com sua filha em um local miserável que ainda sofre os efeitos do pós-apartheid e da colonização branca. É um ambiente de ódio, ora velado, ora exposto nas mais cruéis atitudes.

Lá, ele passa a compreender, de forma brutal, os efeitos de representar a figura de um opressor, que durante séculos submeteu a população da África a uma situação de servidão.

Desonra é um livro realisticamente cru, praticamente sem poesia. Nele impera uma tensão subentendida das classes sociais, uma inversão dramática na qual o “miserável” é o elemento dominador, é aquele que manda, que dá as cartas e que impõe o medo.

Coetzee parece discutir também o direito ao prazer e a sensualidade. David, o personagem, exala machismo em suas atitudes, nos seus atos, ao mesmo tempo em que o autor parece nos conduzir a uma reflexão: - Será David tão brutal quanto os opressores de sua filha? E você chega a conclusão que sim.

O personagem precisou perder seu cargo em uma universidade para que admitisse (mesmo que nas entrelinhas) a sua difícil posição ética como homem branco frente ao ressentimento explosivo e brutal na África do Sul.

 

É uma trama que nos conduz, Coetzee é bem hábil em fazer isso. Ao mesmo tempo em que você se revolta com o que lê, porque é brutal, você deseja continuar a leitura para ver o desfecho. E o resultado não satisfaz, não pela literatura em si, mas pelos fatos, pelos acontecimentos.

Confesso ter sido um grande desafio ler Desonra. Não sou do tipo de leitora que gosta deste tipo de trama. Sempre que penso na literatura enxergo uma sublimação da realidade e não a apresentação dela, nua e crua, como em um telejornal.

No entanto, Coetzee me cativou exatamente por isso. Consegue  mostrar a realidade tirando-a do jornalismo e fazendo do lírico sua linha mestra.

Não é um livro para se resenhar. Desonra é um texto para se estudar, colocar no “microscópio” e analisar palavra por palavra, tentar montar a sequência de seu DNA para, quem sabe, compreender a grandeza dele.

O título do livro Desonra (ou desgraça no português de Portugal) vai além do ocorrido com David Lurie.  Desonra nos mostra o abandono vergonhoso dos animais e sua respectiva morte em uma clínica veterinária, na violência racial que culmina com Lucy (filha de David) sendo abusada sexualmente, isso sem falar no próprio apartheid (Que seria tema para muitos ensaios) e na desonra sexual de David.

Este livro é de 1999, publicado cinco anos após as primeiras eleições livres na África do Sul e contrasta demais com o otimismo da época.

Creio que precisarei incluir uma nova hastag no blog, aquela dos livros inclassificáveis, aqueles que não me sinto apta a dar nota e tão pouco dizer se gostei ou não.

Neste caso vale o processo, a leitura, a jornada que se inicia na primeira página e segue até a última. É a jornada que te faz perguntar: - Quem eu era quando comecei a ler e quem sou depois desta caminhada?

É o sentimento da literatura contemporânea, que se iniciou na década de 70 e segue até hoje, com suas temáticas multiculturalistas de vozes nacionais, com grande apelo internacional. Na onda em que vieram grandes nomes como Salman Rushdie, Toni Morrison, Vikran Seth e José Saramago.

Super recomendo a literatura para que você possa mudar seu olhar, não só sobre a própria literatura, mas para a realidade que vivemos.

Vale um adendo aqui. O Congresso Nacional Africano considerou Desonra como um exemplo de racismo remanescente no país, o que me parece um contraponto, já que o livro fala exatamente das consequências deste racismo.

 

Autor: J.M.Coetzee

Tradutor: José Rubens Siqueira

Ano de lançamento: 1999

Editora: Companhia das Letras

Gênero: Romance Inglês

Páginas: 248

Avaliação Prosa Mágica: #

 

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