Com sua faixa azul no cabelo e a pérola que ganhou recentemente de seu pai a mulher tinha um ar encantador e ao mesmo tempo misterioso. Quando o pintor pediu que ela se posicionasse em frente à janela, agradeceu a Deus pelo dia estar nublado. O sol poderia ser cruel àquela hora do dia, principalmente para uma pessoa que tinha a pele de marfim.
Era incomodo ficar assim por horas, mas seu
pai havia obrigado a isso. Queria um quadro dela enfeitando a lareira.
A mulher lançava um olhar inquisitivo para
o pintor. Ele era bonito, mas não tinha esplendor ou brilho. Era como uma tinta
vivaz que havia sido guardada tempo demais dentro do pote de vidro e agora
estava sem brilho e desbotada.
Ela olhava para os dedos dele, bem formados
e sujos. As unhas apresentavam uma coloração negra, que se azulava em alguns
pontos. Agora, com o pincel nas mãos, respingos amarelos escorriam lentamente
pelos dedos e caiam no chão formando pequenos sóis no piso.
Não era nada demais, poderia até ser comum,
mas o tempo de imobilidade da mulher trazia outras perspectivas para seus olhos.
O pincel que se mexia inquieto, às vezes delicado outras vezes com força.
Dançava de lá para cá compondo algo que ela não via no momento, mas sabia que
era ela.
As mãos largas do pintor e a tinta amarela
escorrendo, que na luz daquele momento brilhava em comparação a todo o resto do
ambiente que estava na completa penumbra.
O pingo perfeito que cai, na contramão do
céu, e se comprimia no chão em uma festa que batia, subia e se espalhava. Era
gostoso de ver, era consistente de se olhar.
Ela pensava no leite que teria que verter
mais tarde para fazer o iogurte, nas últimas flores de tulipas que pontilhavam
no campo, e nos momentos que podia estender o cobertor na grama macia e
observar os moinhos girando, girando, girando em um contínuo hipnotizante.
As amigas diziam que aquele movimento dava
uma sonolência incontrolável, mas para a mulher dos brincos de pérolas aquele
movimento instigava seus pensamentos que passavam por sua cabeça e flutuavam
feito nuvens em um céu azulado outonal. Ela podia observá-los com ardor, podia
quase tocá-los como se escolhesse o grão para fazer um bom pão.
- Este pensamento sim, este não, este sim,
este não, aquele não.....
Assim seguia o desfile colorido de
pensamentos, que agora, novamente povoavam a cabeça da mulher que posava para
um quadro, que depois estaria em um museu e seria chamada de A Mulher com o brinco de pérola.
Preso naquele olhar jazia questionamentos,
dúvidas e indignações. A mulher que estava lá, diante daquele pintor, não era apenas
alguém com uma faixa azul no cabelo e um brinco de pérola. Ela tinha
sentimentos, ela amava, ela sorria, tinha dores e medos, como o pavor que tinha
daqueles altos muros que separavam o grande oceano das terras onde vivia.
De vez em quando, em momentos que podia ter
um pouco mais de liberdade, ela saia de sua casa e subia a escada ao lado do
muro, só para olhar o mar, só para observar as ondas e a linha do horizonte lá
longe. Seria o fim naquele exato ponto? Haveria ali um grande abismo? O que
aconteceria se alguém chegasse naquele exato ponto da linha do horizonte? Ela
não sabia.
E, a mulher dos brincos de pérolas cismava
enquanto o talentoso pintor tentava colocar tantas emoções em um único lugar.
E assim seguiu, a mulher do quadro sorriu.
Foram dias e horas, mas ao fim, com um grande sorriso de satisfação, o pintor
pousou o pincel que ainda respingava gotas do azul que vinha de lascas de uma
pedra chamada lápis-lazúli – a cor da realeza -, pousou seu olhar na mulher e
com um suspiro disse.
Está feito.
Escrevi este texto em março deste ano de
2023, impressionada por uma palestra de arte que assisti pela internet.
Johhannes Vermeer, em 1665, imaginou uma
mulher vestindo um exótico turbante com um brinco gigantesco de pérolas. Mas
observar este quadro é mergulhar em um olhar, que ao mesmo tempo em que
apresenta doçura, demonstra curiosidade e uma profundidade interior.
A escolha do texto não foi aleatória. Esta
semana vi um vídeo no Instragram que dizia literalmente que a sociedade de hoje
perdeu a curiosidade. E ele falava isso por conta de todo o arsenal de
informações que temos através de um celular, no qual podemos fazer um
aprofundamento de qualquer tema, no entanto as pessoas continuam a ver vídeos
de gatinhos estourando balões, celebridades levantando da cama ou fake news de
política.
Os seres humanos perguntam a Inteligência
Artificial sobre seu time de futebol e
esquecem a miríade de assuntos que podem ser aprendidos por esse poderoso meio
de comunicação.
Fiquei impressionada com o nível de
profundidade desta verdade. Ao final do vídeo o palestrante propõe que devemos
ensinar novamente as pessoas a serem curiosas, e isso com certeza vai passar
por profundas modificações na educação formal e muitos e muitos anos de mudança
cultural, pois ditados como “a curiosidade matou o gato” são as provas de que
ser curioso é considerado um defeito. Na verdade, a falta de curiosidade matou
a sociedade, eliminou a criatividade e o bom senso.
Estimule a curiosidade, se proponha a descobrir
sobre um tema que você não conhece, vá à internet, faça perguntas para
Inteligência Artificial, depois se aprofunde dentro do que ela apresentou, use
os algoritmos a seu favor. Perceba e sinta o prazer de ser curioso novamente.
Que tal começar procurando informações sobre o pintor deste
quadro? Ou então, faça uma pesquisa sobre os pigmentos usados antigamente nas
tintas. Tem histórias incríveis sobre eles. Eu já tive a curiosidade de
pesquisar sobre isso.
Aproveite seu final de semana e faça parte
da campanha “menos vídeos bobos e mais
cultura.”
Grande abraço e boas leituras.
Maravilha de texto. Uma viagem pelo curioso mundo da pintura e dos matizes que colore a vida registrada na arte de um pintor. Viajei muito nesse texto.
ResponderExcluirA curiosidade garante a nossa sobrevivência, satisfaz o nosso vazio existencial e faz o Mundo evoluir.
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